domingo, 22 de fevereiro de 2009

"Queres ser Médico meu Filho?
É uma aspiração de uma alma generosa, de um espírito ávido de ciência. Desejas que os homens te tomem por um Deus que alivia os seus males e afugenta os medos? Pensaste bem no que vai ser a tua vida? Terás que renunciar à vida privada; enquanto que a maioria dos cidadãos, terminado o seu trabalho, podem isolar-se dos importunos, a tua porta permanecerá sempre aberta para todos; a qualquer hora do dia ou da noite virão perturbar o teu descanso, os teus prazeres, a tua meditação; não terás horas para dedicar à tua família, à amizade ou ao estudo; já não te pertencerás. Os pobres acostumados a padecerem, só te chamarão em caso de urgência; mas os ricos tratar-te-ão como um escravo encarregado de remediar os seus excessos; seja porque têm uma indigestão, seja porque estão com um catarro; farão com que te despertem a toda a pressa, desde que sintam a menor inquietação, pois estimam demasiado a sua pessoa. Terás de mostrar interesse pelos pormenores mais vulgares da sua existência, decidir se devem comer vitela ou cordeiro, se devem andar deste ou daquele modo quando passeiam. Não poderás ir ao teatro, nem estar doente; terás que estar sempre pronto para ir à primeira chamada do teu amo. Eras severo na escolha dos teus amigos; procuravas a companhia dos homens de talento, de artistas, de almas delicadas; mas de agora em diante não poderás afastar os fastidiosos, os escassos de inteligência, os desprezíveis. O desonesto terá tanto direito à tua assistência como o homem honrado; prolongarás vidas nefastas e o segredo da tua profissão proibir-te-á de impedir crimes de que serás testemunha. Tens fé no teu trabalho para conquistares uma reputação; tem presente que te julgarão, não pela tua ciência, mas por casualidade do destino, pelo corte da tua capa, pela aparência da tua casa, pelo número dos teus criados, pela atenção que dedicares às conversas e aos gostos da tua clientela. Haverá quem desconfie de ti se não fazes a barba, Outros porque não vens da Ásia; outros porque acreditas nos deuses; outros, porque não acreditas neles. Gostas da simplicidade; terás de adotar a atitude de um augur (adivinho). Eras ativo, sabes o que vale o tempo, mas não poderás revelar fastídio nem impaciência; terás que suportar relatos que começam no princípio dos tempos para te explicarem uma cólica; serás consultado por ociosos que só querem conversar. Serás o vazadouro do seu mundo de vaidades. Sentes a paixão pela verdade, mas já não poderás dizê-la. Terás que ocultar a alguns a gravidade do seu mal; a outros a sua insignificância, pois lhes desagradaria. Terás que ocultar segredos que possuis, consentir em parecer enganado, ignorante, cúmplice. Embora a Medicina seja uma ciência obscura que os esforços dos seus fiéis vão iluminando de século para século, nunca te será permitido duvidar, sob pena de perder todo o crédito. Se não afirmas que conheces a natureza da doença, que possuis um remédio infalível para curá-la, o povo irá procurar charlatães que vendem a mentira de que precisa. Não contes com agradecimento: quando o doente se cura, isso é devido à sua robustez; se morre, foste tu que o mataste. Enquanto está em perigo, trata-te como um deus, suplica-te, promete-te, enche-te de honras; assim que está convalescente, já o estorvas; quando se trata de pagar os cuidados que lhe prodigalizaste aborrece-se e maldiz-te. Quanto mais egoístas são os homens, maior solicitude exigem. Não contes ficar rico com esse ofício tão penoso. Já to disse: é um “sacerdócio” e não será decente ver nele a ganância como a que se vê num azeiteiro ou num vendedor de lã. Tenho pena de ti se sentes admiração pela beleza; verás o mais feio e repugnante que existe na espécie humana: todos os teus
sentidos serão mal tratados. Encostarás o teu ouvido contra o suor de peitos sujos, respirarás o odor de habitações miseráveis ou os perfumes gastos das cortesãs, hás de palpar tumores, tratar chagas verdes de pus, contemplar urinas, observar expectorações, olhar e cheirar imundices, meter o dedo em muitos sítios. Quantas vezes, num dia formoso, cheio de sol e perfumado, ao sair de um banquete ou de uma peça de Sófocles, te hão de chamar para um homem com dores no ventre, que te apresentará uma bacia nauseabunda e te dirá satisfeito... Ainda bem que tive o cuidado de não a deitar fora. Recorda, então, que aquela dejeção deverá merecer o teu interesse. Até a própria beleza da mulher, consolação do homem, se desvanecerá para ti. Vê-las-ás de manhã desgrenhadas, desencantadas, desprovidas das suas belas cores e esquecendo sobre os móveis parte dos seus atrativos. Deixarão de ser deusas para se converterem em pobres sofrendo de misérias sem graça. Sentirás por elas menos desejo que compaixão. Quantas vezes te assustarás ao veres um crocodilo adormecido no fundo da fonte dos prazeres! O teu ofício será para ti uma túnica de Neso. Na rua, nos banquetes, no teatro, mesmo na tua casa, os desconhecidos, os teus amigos, os teus parentes, falar-te-ão dos seus males para te pedirem um remédio. O mundo parecer-te-á um enorme hospital, uma assembleia de indivíduos que se queixam. A tua vida decorrerá na sombra da morte, entre a dor dos corpos e das almas, entre o cálculo e a hipocrisia, que se juntarão à cabeceira dos agonizantes. Ser-te-á difícil conservar uma visão consoladora do mundo. Descobrirás tanta fealdade por baixo das mais belas aparências, que há de demolir toda a confiança na vida e todo o gozo será envenenado. A raça humana é um Prometeu rasgado por abutres. Estarás só nas tuas tristezas, só nos teu estudos, só no meio do egoísmo humano. Nem sequer encontrarás apoio entre os médicos, que se guerreiam por interesse ou por orgulho. A consciência de aliviar males te consolará nas tuas fadigas, mas duvidarás se é acertado prolongar a vida de homens atacados por males incuráveis,crianças doentes que não têm nenhuma possibilidade de ser felizes e que transmitirão a sua vida triste a outros seres que serão ainda mais miseráveis. Quando, à custa de muito esforço, tiveres prolongado a existência de alguns velhos ou de crianças disformes, virá uma guerra que destruirá o mais são e mais robusto que existe na cidade. Encarregar-te-ão então de separar os débeis dos fortes, para salvar os débeis e enviar os fortes para a morte. Pensa bem nisto enquanto estás a tempo. Mas se, indiferente à fortuna, aos prazeres, à ingratidão, se, sabendo que te verás sozinho entre as feras humanas, tens uma alma bastante estóica para te satisfazeres com o dever cumprido, sem ilusões; se te julgas bem pago com a palavra de uma mãe, com um rosto que sorri porque já não sofre, com a paz de um moribundo a quem ocultas a chegada da morte; se desejas conhecer o homem, penetrar em toda a tragédia do seu destino, faz-te médico, meu filho".
Texto pré-hipocrático
"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis."
Fernando Pessoa